Na Internet, jovens desvalorizam o trabalho formal e romantizam a pejotização
Bianca Brustolini
Kamily Nogueira

Trabalhar com Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada significa estar sob a garantia de um conjunto de leis trabalhistas (CLT) que regulam as relações empregatícias no Brasil.
Foto: Bianca Brustolini
“Os jovens e o medo de ser CLT”. Esse é o título do vídeo que a influenciadora Fabiana Sobrinho publicou no TikTok em janeiro deste ano. Com mais de 1 milhão de seguidores na rede social, fabi.bubu diz que ouviu sua filha de 12 anos falando com outros adolescentes sobre ser CLT de forma negativa. Ao ser questionada sobre o que significa ‘ser CLT’, a menina responde que é “andar de ônibus todo dia, muita gente, chefe, pessoas mandando”.
O caso não é isolado. Em abril, a criadora Sawana Dalla publicou um vídeo no Instagram e no Tiktok onde sua mãe, que é professora, conta que os/as estudantes do ensino fundamental da rede pública onde trabalha começaram a usar a expressão “ser CLT” como ofensa. Nos comentários, usuários/as dizem já ter presenciado situações parecidas: “Meu aluno do 4° ano disse que não tinha mais medo do bicho-papão, tinha medo era de virar CLT”, comentou uma usuária na postagem do Instagram.
Mas, de onde vem esse desprezo?
O trabalho com carteira assinada tem sido cada vez mais desvalorizado, especialmente com a crescente circulação de opiniões nas redes sociais digitais, que ajudam a espalhar uma visão negativa sobre o emprego tradicional. A ideia de que o trabalho formal está associado à subordinação, à rigidez das normas e ao fracasso tem ganhado força, impactando não só os jovens, mas toda a sociedade.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), até fevereiro deste ano 39,5 milhões de brasileiros estavam empregados no setor privado com carteira assinada, enquanto 13 milhões trabalhavam informalmente e 25,8 milhões por conta própria. Além disso, 40% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam em situação de informalidade no final de 2024.
Esse quadro tem impulsionado o aumento das atividades empreendedoras no Brasil. Segundo o Monitor Global de Empreendedorismo, realizado pelo Sebrae, mais de 47 milhões de brasileiros estão envolvidos em algum tipo de relação empreendedora, refletindo o aumento do desejo de autonomia e liberdade no mercado de trabalho.
Nesse contexto, ter um emprego com carteira assinada passou a parecer menos interessante, ainda mais com o aumento da valorização do empreendedorismo e com a piora nas condições de trabalho desde a reforma trabalhista de 2017. Segundo a professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa, Daniela Alves, isso tem mudado como as pessoas veem o trabalho, que, para muitos, deixou de representar dignidade e passou a ser visto como algo explorador e opressor.
Essa mudança já atinge os mais jovens. Expressões que soam como um xingamento, como “você é um CLT”, têm se tornado comuns entre crianças e adolescentes, refletindo uma percepção negativa, muitas vezes influenciada pelo comportamento dos adultos ao redor: “Crianças e jovens não sabem essas coisas. Os adultos os ensinam. Então, se eles estão aprendendo que isso é ruim e que tem um sentido negativo, está vindo de algum lugar”, afirma Alves.
A professora aponta que, além da família e da escola, as redes sociais e a mídia têm grande influência em como o trabalho é percebido. Profissões mais flexíveis, como a de influenciador digital, costumam ser mais atrativas por serem apresentadas como alternativas mais fáceis, lucrativas e cheias de prestígio.
Questionada sobre como combater a propagação das fake news em relação ao regime da CLT, Daniela Alves defende que, apesar das relações trabalhistas gerarem insatisfação, é essencial construir uma contra-narrativa, incentivando a produção de conteúdos educativos que mostrem a importância dos direitos trabalhistas na promoção da dignidade e segurança do trabalhador, sem ignorar as contradições que esse modelo apresenta. Segundo afirma, “não podemos idolatrar ser trabalhador. O problema é o conceito CLT, porque CLT é símbolo de garantia e de direitos trabalhistas. Não quer dizer que todo trabalhador CLT é feliz. Ele tem uma luta constante e permanente, para manter a sua dignidade e as suas condições de trabalho”.

Vídeo da influenciadora Sawana Dalla e sua mãe sobre as crianças usarem o fato de ‘ser CLT’ como ofensa.
(Reprodução/Instagram)
O que, afinal, significa ‘ser CLT’?
A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) é um conjunto de leis trabalhistas que regulam as relações empregatícias no Brasil. “Trabalhar CLT” ou “trabalhar de carteira assinada” significa atuar em um regime de trabalho regido por essa norma e sob assinatura da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).
Essas leis definem a carga horária do trabalhador, salário mínimo, deveres do empregador e os direitos do empregado. Ou seja, orienta toda a relação entre empresa e funcionário.
Entre os principais direitos garantidos pela CLT, atualmente, estão:
- Salário mínimo;
- Jornada de trabalho máxima de 8h diárias ou 44h semanais
- Pagamento extra por horas adicionais;
- Férias remuneradas;
- 13º salário: pagamento adicional no fim do ano, proporcional ao tempo trabalhado;
- FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço);
- Seguro-desemprego: benefício temporário para trabalhadores dispensados sem justa causa;
- Descanso semanal remunerado: direito de folgar ao menos um dia na semana;
- Licença-maternidade e paternidade: licença-maternidade de 120 dias e licença-paternidade de 5 dias, podendo ser estendida.
Pejotização e precarização do trabalho
A PJ (como foi popularizada a pessoa jurídica) é uma entidade formada por um ou mais indivíduos e registrada no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). O termo pejotização surge, assim, para nomear a contratação de profissionais como pessoa jurídica, em vez de empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nesse tipo de contratação, o trabalhador se torna um prestador de serviços: a relação passa, então, a ser de empresa para empresa, ao invés de empresa-empregado.
Na prática, muitas empresas têm utilizado o contrato de terceirização para mascarar uma relação de trabalho, uma vez que a pejotização pode representar uma grande economia para o empregador. Isso porque, como pessoa jurídica (PJ), o profissional emite nota fiscal e assume a responsabilidade por todos os tributos relacionados à sua atividade, incluindo a contribuição para a Previdência Social. Além disso, o empregador se abstém de encargos que são exigidos pela CLT, como 13º salário, férias remuneradas, horas extras, entre outros.
A pejotização ficou mais forte no país após a Reforma Trabalhista de 2017, onde a legalidade da terceirização foi estendida a toda e qualquer atividade de um negócio.
Os comentários que notamos nas redes sociais – e que têm influenciado o entendimento das crianças e adolescentes sobre o trabalho de carteira assinada – indicam que ser CLT é o “fim da liberdade”. Na perspectiva do professor do Departamento de Economia da UFV, Rafael Campos, essa é uma visão deturpada, que coloca o trabalho PJ como a verdadeira liberdade de fazer seu próprio horário e trabalhar da forma que se quer. Mas, na verdade, a realidade da pejotização é outra.
O professor atenta que, muitas vezes, a migração do trabalhador da CLT para a PJ parte do próprio empregador, como uma estratégia para reduzir os custos do/a funcionário/a. Isso significa que, mesmo em um contrato PJ, o profissional permanece em uma relação empregatícia semelhante à da CLT, mas sem as garantias trabalhistas.
No ano passado, 285.055 processos foram levados à Justiça do Trabalho por profissionais PJ ou autônomos pedindo reconhecimento de seus vínculos empregatícios. A busca por direitos no ambiente de trabalho ocasionou um aumento de 57% nos processos abertos em relação a 2023.
A principal queixa nesses casos é de fraude na relação de trabalho, onde o emprego é mascarado por um contrato PJ. Como explica o especialista, o profissional, apesar de formalmente contratado como Pessoa Jurídica, muitas vezes acaba submetido a condições típicas de um vínculo empregatício, com cumprimento de jornada de trabalho, escala fixa e até exclusividade. Para Campos, isso revela uma “lógica oposta” à da PJ. A PJ não é liberdade, não é para que você possa trabalhar do modo que você bem entender”.
Rafael Campos diz ainda que essa desvalorização da CLT e o aumento da informalidade são, também, uma questão geracional. “Há muito pouco tempo, os trabalhadores entravam no mercado de trabalho buscando estabilidade e uma garantia de remuneração, mas principalmente uma garantia de crescimento, plano de carreira etc. Hoje em dia, o trabalhador entra no mercado visando muito mais esse ganho imediato de curto prazo, sem se resguardar, muitas vezes, até por falta dessa maturidade jurídica e fiscal”, explica.
Para mais informações sobre o tema, confira a entrevista completa:
Veja linha do tempo das Leis Trabalhistas no Brasil: